quarta-feira, 18 de março de 2009

Texto-crítico sobre o Festival de Teatro de Guaramiranga 2006


Olá Pessoal,


aí vai um texto do crítico da revista Bravo! Kil Abreu sobre o 13º Festival de Teatro de Guaramiranga em 2006, quando passamos por lá com o Diário de um Louco. Aos pouquinhos vamos jogando mais material aqui no blog.


Abraço carinhoso
André

(Foto: Ceronha Pontes em cena de Camille Claudell)

TEATRO DE GUARAMIRANGA
As vocações de um festival
Kil Abreu

Uma característica importante do Festival Nordestino de Teatro de Guaramiranga é o seu recorte regional. Se por um lado o festival não tem a ambição de um alcance nacional - que traria o benefício de um intercâmbio mais variado de possibilidades, no diálogo dos artistas e público local com as produções de outras praças -, por outro é vantajoso que se concentre sobre as produções nordestinas.
O que deixa ver com maior concentração e nitidez os avanços e faltas em áreas afins ao teatro na região, como as políticas públicas para a cultura e a formação artística em artes cênicas.Na coordenada estética, que não está apartada da formativa, fica muito evidente, ao menos no festival, a repartição da produção teatral em três vias: uma cena menos recorrente, marcada pelo regionalismo na sua feição genuinamente popular e tradicional (que tem exemplo no trabalho da Cia. baiana Finos Trapos, “Sagrada Folia”); um outro gênero de regionalismo, caracterizado formalmente por uma tentativa de humorismo que tem grande apelo popular, mas que empresta seu eixo criativo da parte mais empobrecida que o espólio televisivo tem a oferecer ao teatro (é o caso de “Esperando comadre Daiana”, de Juazeiro do Norte, e do desvirtuamento do texto de Plínio Marcos, “O assassinato do anão”, na montagem do grupo Harém, do Piauí). Por fim, uma terceira via, felizmente hegemônica, que dá conta de experiências cênicas mais ambiciosas quanto aos propósitos artísticos, mesmo quando a fatura cênica não resulta totalmente satisfatória.Neste último caso é notável a presença dos bons intérpretes, que reverteram, em Guaramiranga, o mito do monólogo como forma teatral marcada pelo ensimesmamento e pela chatice. Ao contrário, o biscoito fino do festival foi oferecido à platéia na bandeja de solos reveladores. A começar pelo exercício cativante de Fábio Vidal em “Erê, eterno retorno”, uma narrativa física em que a poética da autonomia expressiva ganha uma espécie de aeróbica cênica envolvente. Ou a empatia extra-ordinária de André Morais, em uma encenação que alcança o rigor da melhor poesia em “Diário de um louco”, de Gogol. Ou ainda o comprometimento dilacerante do cearense Silvero Pereira na ótima defesa da personagem de Caio Fernando Abreu em “Uma flor de dama”. A esta altura do festival essa tríade de bons atores ainda pode ganhar a qualidade de um quarto solo, “Camille Claudel”, de Ceronha Pontes. A julgar por outros trabalhos da atriz, é muito provável que o quadrado se feche com o mesmo nível de qualidade visto até aqui.Se os monólogos são as melhores marcas do festival, há ainda duas menções importantes a fazer: a Caravana Cia de Teatro, que trouxe na montagem da “Caravana da Ilusão”, de Alcione Araújo, um projeto de pesquisa artística interessante, ainda que o resultado não tenha alcançado a qualidade expressiva necessária para a aderência efetiva da platéia. E, por fim, a versão dos Clowns de Shakespeare, do Rio Grande do Norte, para “O Casamento dos pequenos burgueses”, de Brecht. A montagem revelou alguns aspectos que deveriam ser referenciais para o amadurecimento da prática teatral de grupo: um trabalho de longo prazo, não pontual, que gera bons frutos em cena, sobretudo a afinação do elenco; e o cuidado no acabamento do espetáculo, em todos os seus detalhes, da sofisticada mecânica cenográfica à colaboração da trilha musical com a dramaturgia.A este panorama, provavelmente revelador de alguns aspectos importantes da cena nordestina atual, soma-se ainda um apontamento, a ser confirmado por quem tenha mais intimidade com a articulação entre processos artísticos e o fomento público à formação e à produção. Há a necessidade - como em outras regiões do país - de políticas públicas que criem os espaços necessários de investigação e amadurecimento das linguagens cênicas, em estratégias formativas menos pontuais e mais ambiciosas. O Festival de Guaramiranga evidencia que o teatro ganha quando a experiência artística é fomentada, seja no aspecto das oportunidades de intercâmbio cultural, seja no aspecto de uma atividade continuada de formação. O mesmo vale para o incentivo à pesquisa, produção e circulação de espetáculos. O painel artístico que as platéias acompanharam atentas em Guaramiranga nos diz com muita objetividade que quando o Estado cumpre essas funções sociais, tão elementares quanto à educação formal ou à saúde, os artistas respondem com a potência de quem quase sempre sobreviveu sem nada e aprendeu a dar tudo em troca. É hora de inverter os termos. Algumas pequenas epifanias vistas no alto da serra cearense nestes dias nos dizem que vale a pena.

O autor é mestre em artes, crítico-colaborador da revista Bravo, jurado dos prêmios Shell e APCA de teatro.

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